Topei com este anúncio procurando um redator, numa rede social. Clique e observe o que ele exige:
O contratante está pedindo que o redator contratado escreva usando gênero neutro. Entende-se que o público a quem o texto será dirigido (a “buyer persona”, como dizem os marqueteiros) é o chamado “não binário”, quer dizer, pessoas que não se sentem totalmente pertencentes ao gênero masculino, nem totalmente pertencentes ao feminino.
Ok, esse público existe, não há qualquer discussão quanto a isso.
Eu não sou gramaticista, sou apenas uma professora, e vou mostrar alguns aspectos que mostram que essa exigência não faz sentido e pode até prejudicar o trabalho do redator contratado (se ele não tiver experiência).
O gênero masculino e o gênero feminino em português são indicados com segurança por artigos.
Quer dizer, as palavras terminadas em “a” podem não ser femininas, e as palavras terminadas em “o” podem não ser masculinas. Muitas palavras masculinas terminam em “a” (guarda-chuva) e muitas femininas terminam em “o” (avó), sem falar nas que terminam em consoante (rapaz).
Então não faz sentido nenhum mudar letras finais das palavras em português, para que elas pareçam neutras, porque outros elementos das frases terão de ser alterados também.
O fato de o gênero masculino (não o sexo masculino!) ser usado como genérico, não significa nada de machismo ou opressão
É o que dizem os gramáticos – a origem disso está lá atrás no latim. Havia um gênero neutro em latim que se condensou com o masculino em um só. Quando usamos o gênero masculino para generalizar, estamos usando um gênero neutro nesse sentido. Para mais dúvidas, procure as explicações do professor Mattoso Câmara Jr, que é uma sumidade na área!
O fato de se usar “e” para neutralizar o gênero pode complicar terrivelmente as frases
Imagine um trecho como
“… e o rapaz é alterofilista”
que seria alterada conforme o contratante acima deseja, e ficaria assim
“… e e rapaze é alterofiliste”
Não preciso nem dizer que será impossível que todo um povo (o brasileiro) passe a falar dessa forma, mas veja que dois “e” estavam um do lado do outro, sendo que servem para coisas diferentes, têm utilidades diferentes!
Também arrisquei adicionar o “e” desejado pelo contratante a uma palavra terminada em “z”, já que “rapaz” é o masculino de “rapariga” (bem confuso isso, né?)
E imagine agora uma criança sendo alfabetizada.
Não quero nem imaginar…
A ideia de que um grupo cria regras e todos as obedecerão não funciona
A língua não aceita isso. Primeiro o povo que fala aquela língua passa a usar a língua daquela forma (digamos que com uma nova regra) porque esse povo deseja assim. A língua é criada pelo povo, não pelos gramáticos. Aos poucos (décadas!) aquela forma vai sendo aceita e incluída nas gramáticas. E quando eu digo “o povo”, eu quero dizer muita muita gente, o povo todo, não apenas um grupo.
Se apenas um grupo fala e escreve daquela forma, então isso é uma gíria, ou modismo, e se mantém como algo marginal à língua em si. Dentro de algum tempo desaparece.
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Mas é possível criar textos em que o gênero se mantenha neutro, que é o desejo daquele contratante (e tem sido discutido em outros países também), sem entrar nessa coisa bizarra de trocar “a” e “o” por “e” nas palavras e criando um texto difícil de ser entendido! O trecho
“… você, trabalhador qualificado…”
ou
“…você, trabalhadora qualificada…”
pode ser escrito assim:
“… você, que trabalha e tem qualificação…”
E como tudo tem um preço, pode ser que parte da emoção do texto se perca, porque à medida que somos impessoais e neutros isso tende a acontecer. Um redator experiente tem habilidade para ajudar esse contratante, mas não da forma que o anúncio pedia!
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